29 June 2010

PATROCÍNIO OFICIOSO - PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA

Este episódio teve lugar, no dia 28 de Junho de 2010, na sala de audiência do 6º Juízo Criminal de Lisboa. Não se baseia num artigo publicado num jornal, mas bem poderia sê-lo.
Para dentro da sala de audiência foram chamados 6 advogados, os 6 julgamentos que deveriam ter início às 02.00pm não começariam antes das 02.40pm - o oficial de justiça presente informou que o juiz estaria, pelo menos, meia-hora atrasado. 
Apenas 2 dos 6 arguidos, compareceram. 
Deviam ser 02.40pm, o Juiz e o Magistrado do Ministério Público entravam na sala e os demais presentes levantavam-se. Porque não havia nenhum arguido detido, seguindo-se a ordem prioritária, primeiramente, foi feita a leitura de uma sentença - processo que respeitava a crime de condução sem habilitação legal - e, em seguida, realizou-se a audiência de julgamento de um dos arguidos (presentes). O crime por que havia sido julgado: condução sem habilitação legal. Depois de informado sobre os seus direitos e deveres (e de respondidas as questões obrigatórias) é-lhe dada a palavra que se disse extremamente arrependido, inclusivamente já tinha a carta de condução portuguesa. Na altura dos factos, 2006 creio, tinha carta de condução angolana, que, porque não estava válida, não poderia beneficiar do protocolo celebrado entre Portugal e Angola. A sua defensora oficiosa pediu justiça. O Juiz, antes de ler os averbamentos ao registo criminal, insistiu junto desta: "de certeza que não quer fazer nenhuma pergunta ao arguido?", ao que respondeu "não quero". O extenso registo - condenado nas mais diversas penas por inúmeros crimes de condução sem habilitação legal, um de condução sob o efeito de álcool e outro de natureza diferente - não abonava a seu favor. Foi dada a palavra ao MP que ainda que tenha realçado o facto de as penas de prevenção especial não terem durante muito tempo sortido efeito, considerou especialmente o facto de o arguido ter entretanto tirado a carta de condução e já não poder cometer o crime por que vinha acusado - ainda que não o impeça de cometer crimes relacionados com veículos automóveis...Em harmonia com as restantes condenações propôs pena suspensa. É dada palavra à defensora oficiosa que diz: "apenas gostaria de referir que o arguido tirou a carta de condução, só isto." É encerrada a audiência.
Inicia-se de imediato o julgamento do segundo arguido que comparecera. Antes mesmo de se dirigir ao arguido, o Juiz olha para o processo e diz "mas a demandante está insolvente, o mandato da advogada não está válido, o julgamento não vai poder prosseguir". O arguido levantara-se e não quis perder a oportunidade que tinha para se pronunciar - na mesa à minha frente estava sentada a sua defensora oficiosa - começa por dizer que tem noção que aquilo que fez não deveria ter feito, mas que tinha sido porque precisava mesmo. Agora dedica-se a limpar a sua casa, já que a sua mãe doente, esteve acamada durante 6 anos e mais ninguém havia para dela cuidar que não ele. O discurso não era totalmente perceptível, entre as lágrimas e os soluços, dava, contudo para perceber, a aflição em que aquela pessoa se encontrava. A sua defensora oficiosa continha-se para não se desmanchar a rir, eu continha-me para não reagir, estava com vontade de interromper tudo e perguntar: como é possível uma pessoa querer rir-se perante uma situação destas? Que não acredite, ainda se pode conceber, o ser humano mente, é facto, mais ainda quando está prestes a ser julgado, mas rir com ar de gozo enquanto uma pessoa relata parcialmente a miséria que a sua vida é? Não há palavras. O Juiz interrompe-o, diz que não vai haver julgamento hoje, que quem contra si deduziu pedido de indemnização civil terá 20 dias para se pronunciar e que posteriormente seria notificado de nova data. O arguido prossegue, quer falar e fala: "eu roubei [para ter(?)] fraldas para a minha mãe...nós não tínhamos dinheiro, ela morreu nos meus braços, agarrada à minha mãe, Senhor Dr. Juiz" - as lágrimas, minhas, começavam a escorrer, estava a ser muito difícil conter-me - "e, eu sei, Senhor Dr. Juiz, que o que eu fiz não se faz, e quero pagar, mas, uma coisa que não consigo perceber é o pedido que é feito quanto aos seguranças, porque pagar aquilo que tirei sim, mas pagar quando fui agredido por 4 seguranças fora do alcance das câmaras é que já não dá para entender". O Juiz sobre aquela matéria não tinha de se pronunciar, a sua defensora oficiosa não dizia nada, estava a tentar conter o riso, ainda assim aquele diz-lhe que é uma questão que terá de discutir com a sua advogada para alegarem o que acharem conveniente. "Pois, Senhor Dr. Juiz, a Abraço está agora a ajudar-me com os dentes, já me tiraram estes de cima e depois vão pôr-me dentes novos, para com o meu portefólio, conseguir arranjar emprego. Nessa altura já poderei pagar tudo. Mas não me castiguem mais, morreu a minha mãe, nos meus braços, eu sei que não se rouba, não se repetirá nunca mais, eu não volto a fazê-lo, mas não tive mesmo outra hipótese." "Pronto, Senhor, acalme-se. Agora tem de falar com a sua advogada e esperar para ver o que vem dizer ao processo a denunciante". "Obrigado, Senhor Dr. Juiz."
Era a minha vez, sabia-o, mas não conseguia deixar de pensar naquilo a que assistira. Não interessa saber se o arguido falava ou não verdade - eu acreditei que falava - e como é que, sem certezas, se prefere pensar que ele mente? Porque é que se assume que os arguidos são criminosos antes de serem condenados? Porque é que os advogados contrariam tantas vezes os princípios que muitas vezes acusam os tribunais de ignorar e mesmo violar: o da presunção da inocência e o do in dubio pro reo. Porque é que pelo facto de as pessoas, em geral, mentirem faz com que a estória que aquela pessoa relatou não mereça credibilidade? Porque havia a hipótese de ter sido consumidor de drogas pesadas? Poupem-me!
Não digo que as pessoas, especialmente os arguidos, não mintam. Claro que mentem, - são pessoas e as pessoas mentem, sobretudo quando culpadas ou presumíveis culpadas de alguma coisa querem que seja provado que não  são (culpadas) ou querem provar a sua inocência - mas até sabermos que é mentira porque não pensar que é verdade? Porquê partir do preconceito para o conceito e não de um conceito para um pós-conceito? - se é que se pode colocar a questão nestes termos (literalmente)...
Há advogados que, no exercício do patrocínio oficioso, não se esforçam tanto...às vezes porque os arguidos também não querem saber, não se importam minimamente, não manifestam qualquer interesse. Porém, tal não é motivo para, em tribunal, não fazerem o melhor que podem e conseguem, para não se esforçarem ao máximo por defender o interesse daquele que está em julgamento. 

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