27 October 2009

"A Europa não pode esquecer"

Falava eu do que me contavam os meus pais…numa conversa surge a lembrança de um texto escrito em Novembro de 2000, intitulado “A Europa não pode esquecer”. Interessante comparar o que se escreveu em 2000 e o que se vive em 2009...
Pergunto: terá a Europa esquecido? 
A Europa não mais teve de enfrentar desafio semelhante... No entanto, fora do palco europeu, onde a responsabilidade europeia não é menor do que fora dela, fez-se sentir a sua impotência. Perante um crime que é "contra a humanidade" não releva o local onde o mesmo é cometido, a responsabilidade é "do mundo".
O genocídio no Darfur e no Ruanda são exemplos de "esquecimento". No que respeita ao Kosovo o "genocídio" ficou-se, graças a um esforço também europeu, pela tentativa, "aqui" fez-se sentir - sob a forma de prevenção - a "lição" da Bósnia. 
Quanto à Bósnia...Karadzic continua por julgar e Mladic por encontrar...Ainda não se fez "justiça". As vítimas (os que morreram e os que ficaram) não estão 'vingadas', porque os que a perverteram não foram julgados. Continua a pairar uma sensação de impunidade para os mais terríveis assassinos. 
Disse, em 2000, Álvaro Vasconcelos «O julgamento de Milosevic será, também, um momento de reflexão para a comunidade internacional sobre as terríveis consequências humanas das suas longas inacção e impotência.» Verdadeiramente não houve julgamento. A "lição da Bósnia" não deverá apenas servir para prevenir o genocídio, também no que respeita ao julgamento dos criminosos de guerra - dos que cometem crimes que afectam a humanidade - a Europa, o Mundo, todos nós, temos de compreender que, citando uma vez mais Álvaro de Vasconcelos (no caso reportando-se ao Médio Oriente), "the clock is ticking"! 
A morte não é pena (punição) - relembre-se que Milosevic morreu antes de tempo... 

Julgar os crimes contra a humanidade cometidos nos Balcãs, mais do que para punir os que os cometeram, serve para fazer justiça – mesmo que póstuma – às vítimas, e mais ainda para impedir que outras haja. Serve para possibilitar a convivência entre as sociedades e os grupos que as formam, para que o “nunca mais” ao nacionalismo extremo, à depuração de qualquer tipo, dentro e para além das fronteiras europeias, seja uma realidade.
Agora que a democracia começa a ganhar raízes na Sérvia e que o novo presidente, com a legitimidade que lhe confere o facto de ter derrotado o ditador Milosevic, já foi recebido de braços abertos pelos 15 chefes de Estado e de Governo europeus, será útil e necessário evocar o passado, exigir o julgamento dos criminosos de guerra? Fará sentido exigir que os Sérvios – que, em delírio nacionalista, apoiaram a limpeza étnica – assumam as suas responsabilidades? Não irá o desejo expresso de justiça prejudicar a transição democrática?
Bem pelo contrário, julgar os crimes contra a humanidade cometidos nos Balcãs é essencial para o futuro da Europa e para a consolidação da democracia na Sérvia. O que está em causa na transição sérvia não é a consolidação do poder de Kustunica, mas pôr termo ao projecto nacionalista extremo que, desencadeado por Milosevic e os seus apoiantes em 1989, com a supressão da autonomia e a imposição da segregação dos Albaneses do Kosovo, iria ser continuado no trágico e sangrento projecto de criação da Grande Sérvia, através da limpeza étnica e do genocídio. Milosevic e a sua política nacional-comunista são responsáveis por mais de 200 000 mortos em nove anos de guerra, por uma política sistemática de terror contra os outros povos da antiga Jugoslávia, nomeadamente os Croatas, os Bósnios e os Albaneses, que foram aos milhares expulsos das suas casas e terras, torturados, executados, pelo simples facto de não serem sérvios nem seguidores da religião ortodoxa. Como se pode esquecer as cidades mártires de Vukovar, na Croácia, cercada e bombardeada durante três meses, ou Sarajevo, cujos habitantes foram durante três anos e meio vítimas dos atentados e dos abuses dos militares e snipers sérvios que controlavam as colinas? Como símbolo terrificante do regresso da barbárie nacionalista na Europa ficará Srebrnica, que, embora sob protecção das Nações Unidas, viu os seus homens serem separados das mulheres e dos filhos e executados a mando do fiel acólito de Milosevic, o general Mladic. Da tragédia ficaram imagens angustiantes, como as dos prisioneiros nos campos de concentração sérvios de Manjaka ou Omarska, das vítimas do mercado de Sarajevo, das valas comuns e dos cemitérios.
Da memória colectiva da Europa não se pode apagar igualmente a deportação maciça dos kosovares e todos os assassinatos, por vezes de famílias inteiras, com o fito de alterar, pela morte e pelo terror, a composição étnica de vastas regiões.
Os crimes cometidos pelo exército e pelas milícias sérvias são crimes contra a humanidade, puníveis pela Convenção das Nações Unidas de 1948, que afirma que são actos de genocídio aqueles que têm como objectivo “destruir, total ou parcialmente, um grupo étnico, social ou religioso”. Por isso, o tribunal internacional para a ex-Jugoslávia inculpou, entre outros, Milosevic, Karadjic, o general Mladic ou o miliciano Arkan por crimes contra a humanidade. O seu julgamento deve ser um momento para que os Sérvios assumam plenamente a dimensão dos crimes cometidos e a quota-parte de responsabilidade que neles tiveram, contaminados então pelo vírus do nacionalismo, feito de interpretações doentias da história e de batalhas com mais de 600 anos, da suposta predisposição dos Sérvios para representarem o destino do mundo ortodoxo, da sua superioridade em relação aos outros povos, mas também de medo em relação aos vizinhos.
A democracia sérvia não poderá consolidar-se plenamente e, ainda menos, Belgrado ser uma capital da União Europeia, se o nacionalismo identitário, o total-nacionalismo de que falava Edgar Morin, não for deslegitimado. Caso contrário, o nacionalismo continuará a germinar e, numa situação de crise, voltará com um herdeiro de Milosevic, ou sob outra forma. Para que isso não aconteça, Milosevic e os outros acusados de crimes contra a humanidade devem ser julgados. Mas será que os novos dirigentes sérvios já o compreenderam? De Belgrado vieram sinais contraditórios, coisa natural em países em revolução ou transição. As declarações de aceitação de um referendo sobre a independência do Montenegro são um corte radical com as posições de Milosevic. Mas não deixa de ser perturbador saber que entre os manifestantes do 5 de Outubro se encontravam, na primeira linha, partidários de Arkan, ou que um dos primeiros actos de Kustunica como presidente eleito foi visitar os Sérvios da Bósnia.
O julgamento de Milosevic será também um momento de reflexão para todos os europeus, portugueses inclusive, sobre o perigo que voltou a cair sobre a Europa democrática, o do nacionalismo identitário, que recusa a diversidade cultural, religiosa, regional e étnica dos Europeus. O delírio da pureza identitária não desapareceu com a queda de Milosevic. Ele continua a manifestar-se na política xenófoba da extrema direita, contra os cidadãos de religiões minoritárias, contra os imigrantes, contra tudo o que não se coaduna com a sua visão fabricada da identidade nacional.
A questão central continua a ser, para os Sérvios como para os demais, assumir a enorme diversidade europeia como uma componente positiva da sua herança histórica e cultural. Kustunica não pode deixar de sobre isto reflectir e tomar partido. Como a mudança em Belgrado é um momento de reflexão para muitos dirigentes políticos europeus e alguns intelectuais que não quiseram ou não foram capazes de compreender o perigo que Milosevic e a sua política representavam, não só para os jovens Estados dos Balcãs, mas para a democracia e a tolerância na Europa e no Mundo. Desta incompreensão ou da falta de convicção democrática ficaram as consequências da impotência da União Europeia, dos Estados Unidos, das Nações Unidas, para proteger da limpeza étnica, primeiro, os Croatas, e em seguida, durante quase quatro anos, os muçulmanos da Bósnia.
Depois veio uma alteração da política europeia e americana e com ela a intervenção da Nato na Bósnia e no Kosovo. Mas também aí continuou a haver quem se recusasse a aceitar a natureza e a gravidade dos crimes que tornaram necessária essa intervenção. O julgamento de Milosevic será, também, um momento de reflexão para a comunidade internacional sobre as terríveis consequências humanas das suas longas inacção e impotência.
Source: IEEI @
http://www.ieei.pt/publicacoes/artigo.php?artigo=919

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